Em Tempo – No divã

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Por: Prof. Gilberto Tannus

Sabe doutora, recordo-me da primeira vez em que viajei sozinho a São Paulo, capital. Há quarenta anos.

Utilizávamos dinheiro vivo ou cheques. Pequenos gastos nos bares de rodoviárias, com bilhetes do metrô e passagens de ônibus circulares eram pagos com trocados que levávamos na carteira. Notas de maior valor – usadas em emergências – ocultávamos em bolsos costurados por dentro da calça. Anéis e colares ficavam na gaveta do criado mudo de casa. No pulso um relógio vagabundo. De reserva, enfiávamos calça, camisa e dois pares de meias e cuecas numa mochila velha. Tudo para despistar assaltantes ou trombadinhas.

O ônibus da Empresa Cruz saía de madrugada de Taquaritinga, entrava em Araraquara, São Carlos e Campinas antes de chegar, ao amanhecer, à “cidade grande”. Desembarcávamos cansados, mas não reclamávamos. Naqueles idos ninguém tinha pressa. Livros comprados por reembolso postal demoravam duas semanas; cartas manuscritas, enviadas em envelopes selados, tardavam dias. Caso não extraviassem. Éramos felizes e não sabíamos. O tempo arrastava-se devagar e a areia da ampulheta da existência caia lenta, lentamente.

Empurra-empurra na estação do metrô. Já no interior de um vagão deparei-me com a real realidade do povo paulistano: milhões de pessoas condenadas à solidão. Sentados ou em pé, homens, mulheres e crianças – assustados – evitavam cumprimentar-se. Sorri então para uma senhora. Fingindo não perceber, desviou o olhar. Nas fisionomias, desconfiança. Mas, não apenas isso. Algo mais… Medo. Sim, um medo profundo. Temiam-se uns aos outros, viam-se como inimigos – todos acovardados atrás de um escudo de indiferença e frieza.

Filosofei. Entes hermeticamente isolados de seus semelhantes, com os quais cruzavam nas ruas, nos centros comerciais, no transporte coletivo, nas empresas onde trabalhavam. Perfeitas mônadas leibnizianas. Não há duas iguais no universo. No sistema do pensador alemão Leibniz, levam ao seu máximo a ideia de substância individual, fundamentada nos princípios de identidade e da razão suficiente.

Pode a senhora imaginar o peso esmagador da angústia que cada um daqueles seres suportava nas costas? Incapazes de se entregarem emocionalmente desarmados às incertezas da aventura de um relacionamento pessoal, buscavam em organizações gregárias institucionais o bálsamo para as feridas abertas pela falta de afeto humano. Da histérica necessidade de fuga da solidão, supervalorizavam o pertencimento às torcidas organizadas de futebol e associações de escolas de samba do bairro.

Doutora, naqueles 15 minutos da curta viagem de metrô, eu, misantropo irremediável, pude compreender a razão do desespero espiritual dos milhões de habitantes da “cidade grande”. Qual David Riesman e seu “A Multidão Solitária”, qual nada…

Terminou meu tempo?

Prof. Gilberto Tannus é mestre em história pela Unesp.

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