Artigo: O direito de velá-lo

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Por: Prof. Sergio A. Sant’Anna

Já não há mais o direito de se despedir do corpo do ente querido. É mais um falecido. Porém, é assim que inúmeras pessoas, assim como o líder do poder Executivo tratam aqueles que são mortos devido a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus.

Quando saí de Porto Alegre, no início deste ano, para vir trabalhar ao sul de Santa Catarina, não imaginava que passaríamos por tamanha prova de humanidade como estamos passando neste momento caótico. Isolados em casa, apenas saindo quando a necessidade exige, acompanhamos o sofrimento de muitos pelas redes sociais e canais de notícia televisionada. Não menos diferente das demais cidades do sul de Santa Catarina, onde o coronavírus se difundiu neste Estado, a cidade de Tubarão (onde resido atualmente), com pouco mais de cem mil habitantes, possui 36 infectados pela Covid-19. Morando a pouco na cidade, como relatei no início desse texto, não conheço ninguém que possui a doença. Segundo o Governador, Carlos Moisés, através de seu boletim diário, informou que a partir de agora os moradores saberão dos vizinhos que estão ou estiveram “covitados”. Não sei se será útil ou se causará uma aversão, todavia as medidas tomadas pelas Secretaria de Saúde do Estado e do Município desagradaram ao Governo Federal, mas produziu efeito. Os números crescem devagar. Entretanto, tudo que é bom há pouco tempo de durabilidade, as medidas de isolamento social foram flexibilizadas, e inúmeros munícipes voltaram a uma vida normal como se nada houvesse acontecido (está acontecendo!).

Enquanto escolas encontram-se fechadas, o comércio voltará a funcionar. Bancos, concessionárias, escritórios, lotéricas voltaram às suas atividades normalmente. Filas imensas são expostas pela mídia. Parece que a população ainda não entendeu a gravidade dessa doença. Semana passada quando escrevia o artigo anterior para este semanário, o número de mortos chegara aos 330; hoje, ao digitar as teclas deste computador e refletir sobre essa situação que estamos vivendo são mais de 1100 mortos. Especialistas insistem no isolamento social, demonstram números, apresentam a racionalidade como prova, porém parece que inúmeros cidadãos esqueceram-se do altruísmo (palavra que não me canso de bradar).

Apesar de ter acompanhado diversos depoimentos de pessoas que perderam os seus familiares, histórias tristes, que nos fazem repensar sobre atitudes que tomamos em nossa dia a dia, uma marcou-me. Quando escutei aquela mulher falando, sua imagem aos prantos e depois um pouco mais calma, concluí que a vida é um sopro. Hoje estamos ao lado daqueles que amamos; amanhã, não mais… acaba sendo muito mais doloroso quando não se consegue despedir do falecido. Ela perdeu o esposo, músico aqui de Tubarão, sem comorbidades, porém a falta de ar e febre alta levou-o ao hospital. Dali saiu morto. Duas semanas em uma UTI, sem contato com os familiares. A última vez que a esposa o viu, foi realizando uma “live” em que cantava músicas do seu próximo disco.  Na manhã seguinte ele deu entrada na Santa Casa aqui da cidade e saiu de lá sem direito a um velório digno. Não puderam velá-lo. Isso me acende a lembrança daqueles que tiveram os seus entes capturados por regimes ditatoriais e nunca mais retornaram ao seio de seus lares, e até hoje há a esperança de que um dia possam encontrar-se.

Momento insano, desumano, atípico ao nosso linguajar. Não há palavras para expressar essa dor. A família sente e nós deveríamos estar consternados com essa dor: a de não velar os que da nossa vida fizeram parte.

*Prof. Sergio A. Sant’Anna – Professor da Rede Adventista em Santa Catarina; Corretor de Textos em “Redação sem Medo”.

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