O século XXI começou e reclama política

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Por: Rogério Baptistini Mendes*

O século XXI começou para os brasileiros neste mês de março. E, num certo sentido, também para o mundo a pandemia causada pelo coronavírus inaugura uma nova fase na experiência vital, redefinindo estruturas, instituições e relações herdadas do século XIX, da segunda revolução industrial e da generalização do modo de vida urbano e industrial.

Desde o último quarto do século XX, com as alterações na produção promovidas pela robotização e dinamizadas em extensão global pelo fim do bloco socialista, o mundo tem sido redesenhado em todas as suas instâncias. Os fenômenos da globalização econômica e da mundialização cultural são apenas dois exemplos largos de uma mudança profunda que se gestava e cujas consequências se tornam visíveis agora, graças à generalização da revolução da informação produzida pela internet, pelo algoritmo e pela economia que os incorpora.

Expectativas generosas foram criadas graças aos avanços tecnológicos e à abertura política no leste europeu, mas o resultado, para o observador mais atento, ficou aquém do esperado. Basta considerar que ao lado da colossal riqueza criada houve um espetacular aprofundamento das distancias sociais mesmo em sociedades centrais; o trabalho perdeu sua centralidade na organização da vida e a produção foi, enfim, depreciada em função da especulação.

Os esforços reformistas, em sociedades retardatárias como a brasileira, se mostraram insuficientes diante da magnitude da tarefa enfrentada. É que aqui, ao lado da necessidade de ajustar o maquinismo econômico e social à nova dinâmica, havia o legado do passado, ou seja: desproporcionalidade na relação Estado-sociedade, gritantes desigualdades sociais e regionais, incorporação deficiente de setores inteiros ao sistema da ordem. Uma sobreposição de tempos históricos, cada qual com suas dificuldades, a exigir dos atores capacidade analítica, engenho e, sobretudo, disposição para romper com fórmulas prontas e ousar o novo.

Em que pese os esforços havidos -e foram muitos! -, chegamos ao fatídico mês de março de 2020 com uma sociedade cindida social e politicamente, desorganizada economicamente e com um governo em crise. Não fosse a pandemia, nossas dificuldades seriam enormes. Os desafios que se acumulam no mundo do século XXI há muito se manifestam aqui: desemprego estrutural como consequência de alteração do padrão produtivo, crises identitárias, crise das instituições de representação política…

Processos de mudança social de grande envergadura, como o que enfrentamos agora, dramatizados por um vírus que desdenha as angústias dos humanos, podem descambar para duas situações, caso não sejam conduzidos com engenho e arte: anomia e reafirmação do status quo ante. A reafirmação do que Veblen chamou de interesses investidos no caso de resistência por parte de pessoas e grupos que sofrerão em caso de mudança da ordem social é melhor definida, creio, contemporaneamente, pela noção de retrotopia, utilizada pelo sociólogo polonês Zigmunt Bauman, ou seja: as pessoas, diante da incerteza quanto ao futuro se refugiam num passado idealizado em que a vida teria sido melhor, mais segura, estável. A anomia, ou doença que acomete a ordem social com o desfibramento, é uma consequência deste medo, mas também da ausência de qualquer promessa de futuro comum, com a quebra do pacto social.

Se há algo que este século XXI reclama é capacidade de produzir consensos, apontar para o futuro, reinventar a solidariedade. Esse é papel da política! Uma pandemia não pode e não vai decretar nossa hora final.

*Rogério Baptistini Mendes é Sociólogo na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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