Artigo: A irrelevância da denominação para a qualificação contratual

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Por Natália Marques

Qualificar um contrato significa definir a que tipo ele pertence. A qualificação contratual é um processo que demanda do jurista atenção bastante criteriosa. Isso porque encaixar as características de um acordo em uma “base” pré-definida implica pressupor a ausência de quaisquer impeditivos para ambos os contratos se dirigirem ao mesmo regime jurídico para integrar lacunas, interpretar cláusulas, resolver conflitos levados ao Poder Judiciário e, inclusive, promover a incidência dos mesmos tributos e receber o mesmo tratamento contábil.

Qualificações equivocadas já foram objeto de diversas discussões no Poder Judiciário, sendo a maioria oriunda do estranhamento que as novas modalidades e os arranjos comerciais causam quando inseridos no cotidiano empresarial, por exemplo os contratos build to suit, os de arrendamento mercantil (leasing) e o de shopping center.

O contrato build to suit é aquele em que as empresas, visando fugir dos elevados custos de construção de estabelecimentos arquitetados sob medida, contratam empreendedores para a construção do imóvel de acordo com suas especificações para que, posteriormente, possam alugá-lo por dado período de tempo. O valor do aluguel, nestes contratos, tem por escopo cobrir tanto os custos do empreendedor responsável pela obra quanto remunerar pelo uso do bem pela empresa.

No início, alguns estudiosos tendiam a qualificar o build to suit como contrato de locação. O problema em definir dessa forma é que permite a incidência do artigo 19 da Lei das Locações (Lei nº 8.245/91), o que possibilita a revisão do valor da locação pelo valor de mercado praticado para imóveis semelhantes. Ocorre que, como visto, o aluguel pago pela empresa no contrato build to suit não serve apenas para remunerar o uso do local, mas também a construção do imóvel anteriormente. Assim, a aplicação do dispositivo legal teria provocado evidente situação de enriquecimento ilícito da empresa locatária.

Já os contratos de leasing e de shopping center foram analisados pelo Superior Tribunal de Justiça. No caso do leasing, as súmulas nº 263 e nº 293 do STJ, de conteúdos opostos, variaram entre qualificar o contrato como compra e venda parcelada ou como efetivo arrendamento mercantil (leasing), quando existe a cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG). Antes de ser mera questão de nomenclatura, uma das consequências do arrendamento mercantil é que o possuidor pode deduzir o valor do arrendamento da base de cálculo do imposto de renda; se considerado compra e venda, o bem passa a ser considerado ativo da empresa. No segundo caso, a separação do contrato de shopping center do contrato de locação simples culmina no afastamento da cobrança da COFINS sobre o valor do aluguel variável, pago pelo lojista ao empreendedor do shopping (REsp nº 178.908/CE).

Tipos contratuais comuns, com previsão clara na legislação, também já incitaram controvérsias na jurisprudência em virtude de qualificações apressadas e equivocadas. Em uma situação analisada pelo STJ, a denominação de contrato de mandato como contrato de depósito levou à prisão civil de uma das partes por ter sido considerada “depositária infiel” de veículo que lhe foi entregue para destinar à determinada aplicação e não para simplesmente guardá-lo (HC nº 11.551).

Em outro caso, o STJ entendeu que um contrato pelo qual as partes pactuaram a entrega de dez mil sacas de soja para o recebimento de quinze mil sacas, alguns meses depois, não poderia ser considerado contrato de permuta, como o denominaram os envolvidos. Como o contratante se obrigou a devolver bem da mesma espécie e qualidade (soja por soja), o contrato passou a ser qualificado como mútuo e a diferença de sacas de soja a ser interpretada como juros, atraindo a incidência da limitação de juros de 12% ao ano prevista no Decreto nº 22.626/1933.

Percebe-se que a correta qualificação dos contratos é tarefa que deve ser feita de forma criteriosa, com atenção às circunstâncias negociais e ao intento das partes ao celebrá-lo, tendo em vista que cada tipo contratual tem o condão de propagar efeitos diversos, que atingem não apenas a própria interpretação do negócio como também questões contábeis e tributárias.

*Natalia Marques é advogada do escritório Dosso Toledo Advogados de Ribeirão Preto

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